quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Recontando uma parábola

Acabou a inocência, vocês já sabem o que fazer.
Os irmãos siameses estavam crescendo rápido. Gostavam do facto de poderem levantar pesos elevados e fazerem várias cousas ao mesmo tempo, já que eram dois pares de membros agindo juntos.
Com o tempo, porém, os interesses começaram a diferir. Ela queria colher flores, ele pular no rio; ela queria descansar à sombra da árvore, ele em cima de um galho; ela queria correr atrás de uma borboleta, ele também, mas para espetar a pobrezinha em um espinho. E na hora das necessidades? Ave Maria! Ele se divertia fazendo jatos para longe, ela queria sossego para se agaixar e se limpar. Já não eram mais crianças.
A convivência estava ficando difícil, agravada pela impossibilidade de cada um fazer o que queria. Chegou o ponto em que o pênis dele começava a erigir por qualquer motivo, e os seios dela a se tornarem grandes e protuberantes; eles perceberam isso. Foram ao zelador do jardim para tratar do assunto...
- Realmente, vocês estão crescendo mais rápido do que supúnhamos. A actual condição não lhes serve mais. Vamos separá-los. Acalmem-se, façam uma refeição leve e vão dormir. Durante a noite trabalharemos.
Durante o sono, enquanto os espíritos vagavam livres como não podiam nos corpos, a apoptose fez seu serviço. Eles foram separados. Assim que acordaram, tomaram um baita susto ao se verem distanciando um do outro. Ele teve ereção instantânea, pediu licença e correu para uma moita, voltou em seguida para conversarem sobre o assunto. Apesar do medo inicial, combinaram que continuariam a fazer basicamente as mesmas cousas de cunho coletivo, mas cuidariam de assuntos particulares sem interferência do outro. As personalidades rapidamente se opuseram, já trilhavam caminhos distintos.
Durante o almoço, com o peixe que ele pegou e os tubérculos que ela colheu, o zelador apareceu à sua frente. Sabia bem de tudo o que tinha acontecido, mas deixou que eles mesmos falassem. Pelas falas percebeu que ainda não estavam prontos, seus corpos amadureceram mais rápido do que o intelecto, mas estavam bem mais avançados do que era esperado...
- Vocês dois não são mais crianças. Está chegando o momento de assumirem a responsabilidade para a qual foram criados. O que vocês sentiram hoje cedo foi atração sexual, de que lhes alertei há uns anos e com a qual terão que lidar, quando saírem ao mundo. Doravante lhes ensinarei a lida com a manutenção do jardim, para que se acostumem com o trabalho manual e se preparem melhor para o que virá.
O trabalho ajudava a tirar a atenção do sexo, os dois logo aprenderam e se valeram disso. Os dias, que às vezes eram enfadonhos, começaram a ficar curtos, recheados pelas actividades e pelo cansaço moderado no fim da tarde. Tiravam um dia por semana para descansar, mas depois voltavam ao batente, pois crianças ocupadas são até mais felizes.
Em poucos anos o zelador viu que estavam quase prontos, então os chamava todas as noites, fora dos corpos, para que se familiarizassem com o mundo lá fora. Que mundo grotesco! Que primitivismo! Quanta selvageria! Corpos incomparávelmente mais densos e limitados do que os seus. Mas era, como eles mesmos, um mundo de espécies novas, ainda muito jovens e sem noção de si mesmas...
- Estas serão as matrizes. Vocês vão ensiná-las a agir mais com a razão e os sentimentos, menos com os instintos, para que evoluam e fiquem prontos para o início de sua jornada.
- Vai levar muito tempo!
- Sim, meu filho, muito tempo. Mas porque vocês ficaram prontos antes do esperado e os encontraram ainda em estado selvagem.
- Por que eles pegam as fêmeas à força?
- Porque não sabem pedir. Não sabem sequer articular palavras! Para ambos só a química de seus cérebros importa. Vocês terão uma missão dura, os exilados começarão a encarnar e provavelmente corromperão os primitivos. Sua função, pelos próximos vinte e cinco mil anos, será balancear as emoções extremistas que eles alimentarão, por se sentirem seguros nelas.
Todas as noites, durante mais de um milênio, os dois estudaram e trabalharam com afinco, estudo e trabalho para forjar sua formação e seu caráter. Em contraste, tinham uma espécie indolente e espertalhona para colocar nos trilhos.
Certa feita, cheios de confiança, os dois foram a uma árvore à qual foram proibidos de se dirigir até terem a devida permissão. Sem saber de onde, a confiança os preenchia e ambos se aproximaram. Estranharam a ausência do zelador, mas a árvore precisava ser limpa, como todas as outras, então foram limpá-la. Adão puxou a última folha seca do galho e com ela veio uma fruta. Ofereceu-a à Eva, que agradeceu, mas disse que ele estava mais cansado e precisava repor suas energias. Combinaram de dividir a fruta, comeram cada um sua metade e ouviram um estrondo, após o quê o zelador desceu da árvore, em seu corpo apode...
- Vocês estão prontos, é hora de irem embora.
Choro, claro, afinal sempre viveram naquele lugar e a serpente os avisou com uma racionalidade dura, quase cruél. Entretanto, findados os protestos, um grupo de anjos veio explicar a verdadeira natureza de seu professor, que aprendeu a ser duro e suave de acordo com a necessidade, como eles deveriam ser com seus tutelados de então em diante. A serpente, explicaram, estava tão triste com a partida quanto eles, mas sabia que era o melhor e que eles seriam mais felizes após a missão cumprida, após a qual poderiam voltar ao seu lar. Apenas dez anos de despedida e últimas orientações, então desceram ao mundo. Sabiam que tudo o que fizessem seria deturpado, mas precisava ser feito. A serpente disse adeus e voltou ao jardim, sem demonstrar s tristeza pela separação, mas sabia que eles nunca ficariam sozinhos na empreitada.

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