terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A mais negra treva à mais clara luz


Já não bastasse o cataclisma pelo qual passou, com o colapso e completa destruição de sua comunidade, pela mesma fonte que lhes susteve por tanto tempo, agora se vê com os seus saindo de uma deriva melancólica, para a área mais perigosa em que poderiam estar.

Não há como evitar, sabem da iminência das conseqüências, mas a atração é irresistível. seguem cada vez mais rápido para aquele monstro frio e insensível.

Não têm onde se segurar, uma fonte de atrito para frear, enfim, absolutamente nada detém a aproximação acelerada. Não que faça diferença, que adiante, mas todos se desesperam e entram em pânico. Já aquele indivíduo, de tão aterrorizado com o destino que vê os demais grupos terem, não consegue sequer lacrimejar. Fica em sua impotência extrema, que seria facilmente confundida com resignação.

Na verdade quer sair daquela situação a qualquer custo, daria tudo o que pudesse providenciar para tanto. Mas vê, triste e de coração cada vez mais miúdo, comunidades muito mais fortes sendo engolidas, algumas com brilho extraordinário, ao redor das quais muitas outras prosperaram, perecendo nas garras daquele ser inominável e impassível, insensível aos gritos de dor e desespero de suas vítimas.

Com o tempo, suas entranhas sentem a proximidade do monstro. As suas e as de todos os outros. Não adianta repassar tudo o que aprenderam sobre não sofrer antes da hora, o tempo foi muito generoso, mas todo ele não foi suficiente. Resistiram à ruína de uma sociedade extremamente complexa e numerosa, à sua completa destruição por quem lhes deu o sustento desde o começo, de forma intempestiva e explosiva. De sua comunidade local, pouco resta, nada que lembre (nem nos mais loucos devaneios) o viço e a prosperidade que já teve.

Por alguns instantes, inútil tentar medí-los, a dor e o desespero dão lugar às lembranças mais lindas que guarda. Não que não tivesse problemas, por muito tempo eles tiveram muitos problemas, conflitos barbarescos que davam vazão à mais extremada selvageria já lhes cobriu o solo de escarlate, mas depois acabou. Um período incomparávelmente maior de paz e prosperidade tomou conta de tudo. Passou a amar maternalmente aqueles a quem queria esganar, nos primeiros tempos. Mas eles cresceram muito e foram para outras paragens, levando consigo as lições e as boas lembranças que lá tiveram.

Chorou por incontáveis anos pelas saudades, como muitos outros de sua comunidade, mas no fim a resignação de que tinham cumprido maestralmente seu papel com eles, acalentou-lhes de tal forma os corações, que viveram em uma paz sem precedentes, até sua estrela explodir.

Maldita lembrança da explosão! Agora se volta à realidade e ao desespero. Vê que a passagem a memória durou muito tempo, porque estão extremamente próximos ao monstro, estavam distantes quando começou a recordar. A qualquer momento serão eles os devorados.

De tão perto vêem que é muito pior do que imaginavam. Em vez de simplesmente devorar as vítimas, o monstro as dilacera vivas, lentamente, de modo que elas nem mesmo têm mais forças para gritar.

O monstro nem esperou terminar a vítima da vez e já começa a destroçar sua comunidade. Vê seus amados irmãos indo, impotentes, à gula voraz e insaciável do monstro, já calados de tamanha dor e tamanho desespero. Nem com a morte prévia podem contar.

Vão sendo dilacerados, inicialmente devagar, mas a cada elo que se rompe, os mais próximos ao glutão são acelerados até se soltarem sem volta, e então desaparecerem naquelas trevas que luz alguma consegue iluminar.

Não entende o motivo daquilo. Aquele é o seu mundo, ou o que resta dele. Não compreende o motivo de tamanho sofrimento, não se lembra de terem feito por merecê-lo.

Agora sente-se sendo puxado e rasgado. Jamais, em toda a sua longa existência, imaginou que pudesse haver uma dor tão grande. Grande a ponto de emudecer e perder completamente a capacidade de pensamento, de raciocínio, de tudo. Não há noção de tempo, só de dor.

É finalmente separado dos demais e, em vez de atenuar, a dor aumenta. A pressão faz com que sua extremidade "de baixo" vá mais depressa de a "de cima", rasgando-o aos poucos. Nem mais se lembra do monstro que lhe causa o sofrimento, só sabe da dor que está sentindo. Agora, em um tempo incomensurável, só existe a dor. Perde completamente o sentido de si mesmo, naquela escuridão dura e densa, que o estica e comprime ao mesmo tempo. Nem dá para se acostumar à dor, porque ela não pára de aumentar.

Já está dentro do monstro. Depois de ser separado daquilo que foi o seu mundo, agora tem sua casa, sua família mais íntima sendo separada, impotente, para depois ser brutalmente comprimida. A imensa distância que separava os elétrons do núcleo se reduz rapidamente a zero, logo as partículas começam a encolher, despencando em si mesmas até que as subpartículas começam a se tocar. Só existe a dor.

O tempo passa, afinal há um evento em andamento, o esmagamento contínuo que solidifica mesmo o efeito de campo em uma nova partícula. Só existe a dor. Não sabe quanto tempo se passou, sabe que que ele passou, provavelmente é a única coisa que aquele monstro não consegue destruir, afinal a própria destruição é um evento em andamento. Se os humanos ainda existissem, eles poderiam medí-lo. Mas provavelmente não há mais uma só partícula inteira do planeta Terra, o buraco negro já deve ter engolido tudo. A Lua foi vaporizada quando o Sol se expandiu.

Já no centro do monstro, tão brusca e dolorosa quanto o dilaceramento, é a inesperada expulsão que começa. O frio extremo, que faria o zero absoluto parecer tórrido, se converte imediatamente em um calor terrível, que faz a lembrança que tem do Sol parecer gélida.

Estranhamente volta a ter forças para gritar, e grita como jamais o fez nas dezenas de bilhões de anos que já conheceu. Com seu grito vem uma luz insuportável e uma aceleração terrível, que nem durante a atração gravitacional pôde conhecer. Não imagina que força seja esta, que o empurra tão violentamente para fora daquele gargalo faminto.

A dor passa rapidamente e se acostuma com a luz. Embora estejam todos diferentes, reconhece os seus naquele jato extraordinariamente denso e luminoso, tão concentrado e organizado, que a coluna não se dispersa por muitos anos-luz.

Sente um prazer indescritível, que faz desaparecer a lembrança do sofrimento passado. Sente-se forte como jamais em toda a sua existência. Está renovado, completamente diferente. Não sabe de que elemento químico faz parte agora, é diferente de tudo o que conheceu. Um estalo e então compreende, é aquele o motivo de tamanho sofrimento, não cometeu erro para ser punido.

Afastando-se rapidamente, olha a singularidade lá em baixo, agora com um pouco de carinho. Graças a ela, os milhões de anos de estagnação terminaram. Não é um monstro, é um médico, um reciclador que regenerou suas estruturas e deu-lhe vida nova. Que importa o tempo que passou lá dentro? Valeu à pena.

Olha para os astros desesperados, seguindo rapidamente para a renovação. Não adianta dizer-lhes algo agora, ele mesmo não ouviu senão os gritos. Eles compreenderão tudo, quando chegar a hora. Compreenderão e serão gratos.