segunda-feira, 26 de março de 2012

A montanha eterna

Fonte: http://www.meupapeldeparedegratis.com.br/

Um discípulo, após muitos ciclos de aprendizado, se dirige ao seu mestre. Rigoroso, o homem avisou desde o começo que até para ter dúvidas, é necessário saber duvidar...

 - Mestre, posso, agora, fazer as perguntas que pediu para eu esperar até o momento certo?

 - Responda às minhas, primeiro. Como dormiu, filho?

 - Bem, mestre, obrigado.

 - Acordou alguma vez.

 - Três, somente, para verificar ruídos.

 - Que tipo?

 - Não sei explicar. Acordei com a sensação de que os outros precisavam de algum auxílio e fui me certificar.

 - Então vocês já está pronto para ter dúvidas e fazer suas perguntas. Comece.

Como de hábito, o discípulo faz um gesto de reverência, se senta em posição de lótus e começa a servir o chá com um pão rude, recheado de castanhas que ele mesmo colheu e armazenou, durante o outono. Aliás, enquanto os outros reclamavam das colheitas abaixo das expectativas, ele buscou alimentos para o mosteiro em outras fontes, sem que seu mestre precisasse instruir a respeito...

 - Mestre, responda à minha ignorância, o motivo de você aceitar homens e mulheres em seu mosteiro.

 - Eu não aceito.

O discípulo, surpreso, faz um olhar muito engraçado, tirando alguns risos daquele homem grisalho, mas não tão velho como as pessoas se acostumaram a considerar um mestre, que ele mesmo não se considera. Em todo caso, precisa ser chamado por algum nome, além do próprio de nascença, que é muito comum, então aceita a alcunha, mas não admite que o tomem por 'senhor', não se considera digno...

 - Alguns monges só aceitam homens, outros só mulheres. Algumas monjas só aceitam mulheres, outras só homens. Nos quatro casos, ele agem de acordo com a sua natureza, com seus motivos e seus objectivos.

 - E quais os do mestre?Por que 'não aceita' homens nem mulheres?

 - Porque não aceito sexos aqui dentro, eu aceito pessoas. Minha natureza é a de compartilhar meu aprendizado, na medida da capacidade de cada um de vocês, sem olhar para o que é supérfulo, para que cresçam e se sintam plenos em seus próprios caminhos. Meu objectivo é fazer vocês escalarem a montanha eterna, me alcançarem e, com a ajuda da Fonte, que me ultrapassem.

 - "Montanha eterna", mestre? Nunca nos falou dela?

 - Pois bem, agora te falo, é o caminho que vocês estão fazendo. Enquanto as pessoas, apegadas aos seus orgulhos e suas vergonhas, raramente conseguem se fixar além da base da montanha, quase sempre oscilando entre ela e o vale, você está em uma altitude em que pode ver boa parte da região.

 - Eu não reclamo, mestre, porque abracei este caminho de minha própria vontade, estava ciente dos fardos e da escassez de repousos, de que fui alertado. Mas minha fraqueza ainda questiona o motivo de ser tão íngreme, às vezes a ponto de ser quase vertical, com o peso nos puxando para o vale.

 - É justamente para isso, para que você despenque e se esborrache ao menor descuido.
Mais uma cara cômica e mais uma gargalhada do homem, que sempre ensina aos discípulos que ter bom humor é a única amenidade que podem ter, ao aceitarem suas lições...

 - Por que eu deveria me estatelar como uma fruta podre, mestre?
Mais uns risos e ele responde..

 - Não deve. O risco de cair é proposital. Com ele, você se mantém ocupado demais para pensar na vida alheia. Você se concentra na única pessoa que realmente merece sua raiva, seu desprezo e toda a sua ira.

Um breve olhar, dentro dos olhos, e ele percebe ser consigo...

 - Compreendo, mestre. Minhas posições políticas me deixaram vulnerável, quando ainda perambulava pelo vale.

 - Não, filho. Suas posições políticas, ideológicas, enfim, qualquer convicção é irrelevante, se você estiver no comando e não deixar que ela tome suas rédeas. Você estava vulnerável porque tinha orgulho de ser o que pensava que era, e vergonha de muitas pessoas não compartilharem de seu orgulho. Lembra-se, quando você chorou como uma criança, ao ver seus antigos inimigos em situação difícil?

 - Foi minha responsabilidade, mestre. Eu ajudei a colocá-los naquela situação.

 - Não. Eles se colocaram naquela situação. Enquanto eles e seus antigos amigos culpavam os estrangeiros de roubarem suas riquezas, empregando suas forças no ataque à ameaça imaginária, seus recursos minguaram, eles descuidaram de seu trabalho e da assistência ao próximo. Você chorou porque eles não eram mais seus inimigos, eram tolos revoltados, que nem por isso deixaram de ser seus irmãos no mundo. Foi a primeira lição que você aprendeu, e aprendeu bem, escalou vários metros em um só dia.

 - Então mostre, mestre, em parábola, como o orgulho e a vergonha impedem que as pessoas comecem a subir a montanha eterna?

 - Não impedem. Orgulho e vergonha são duas grandes pedras gêmeas, uma não se afasta e não subsiste sem a outra. Como pedras, o lugar delas é no vale. São pedras afiadas, mas brilham bonito e escondem bem o rosto de quem as porta. Ferem, mas convém a quem as carrega.

 - Às vezes precisamos usar pés e mãos para escalar esta montanha.

 - O que é quase impossível com duas pedras pesadas e ferinas ocupando mãos e visão. São pedras feitas para se admirar, mas no lugar delas, às vezes para se proteger à sua sombra quando a luz é muito forte. Não se deve querê-las para si, elas têm utilidade limitada e restrita.

Alguns minutos de silêncio permeiam o quarto, enquanto ouvem-se sons de mantras em música pelo mosteiro. De tão ocupados, tão absorvidos em suas funções, os iniciados raramente vêem suas diferenças. O trabalho incessante, seja no que for, é uma regra de ouro do mosteiro, eles não têm tempo para pensamentos frouxos...

 - A serenidade do mosteiro, mestre...

 - Sim?

 - Não é do mosteiro. É nossa.

 - O que faz um lar, uma comunidade, uma nação, discípulo, não é o território, não é seu hino, não são seus estandartes, muito menos o seu rei. Tudo isso muda. Um terremoto abala a terra e ela desaparece sob seus pés; a língua muda com o tempo, e as palavras do hino fazem cada vez menos sentido; Os estandartes desbotam e rasgam com o uso, sem o qual eles não se justificam, conquistadores chegam e os trocam pelos seus. O que faz um lar, uma comunidade, uma nação, discípulo...

Deixa-o responder à própria dúvida...

 - São as pessoas que integram o lar, a comunidade, a nação. Sem elas, nenhum deles existe. Eu não tenho vergonha de ter sido um tolo, teria se ainda o fosse.

 - Sem vergonha, não há orgulho.

 - E minha caminhada montanha acima torna-se viável. A montanha é eterna porque jamais se chega ao seu cume, então.

 O mestre observa seu discípulo, percebe que está consciente de sua respiração, de seu corpo, da posição de cada dedo, a ponto de saber onde está um pequeno pedaço de pão, que pega e mastiga com suavidade. Respirando com serenidade, deixando cair uma lágrima. O mestre sabe que é de alívio...

 - Mestre, esclareça à minha ignorância, por que disse que é "quase impossível" subir a montanha sem usar as mãos?

 - Você acaba de subir alguns metros sem usá-las. O seu coração está tão leve, que em vez de puxá-lo para baixo, o puxa para cima. É o coração, não a cabeça, a parte mais pesada de uma pessoa. A cabeça, como os milênios provaram, não nos serve para nada além de nos dar meios de como comer, ver e ouvir.

 - Minhas mãos não podem ficar vazias mestre.

 - Então as dê aos seus irmãos e ajude-os a subir.

 - Como o mestre tem feito por mim?

 - Como meu Mestre tem feito por mim.

Serve mais um gole de chá de frutas e se serve em seguida. Passam a falar do mosteiro, dos aprendizes, das pessoas lá fora, que precisam de ajuda mais do que imaginam. Agora sim, ele é um noviço.