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Um discípulo, após muitos ciclos de aprendizado, se dirige ao seu mestre. Rigoroso, o homem avisou desde o começo que até para ter dúvidas, é necessário saber duvidar...
- Mestre, posso, agora, fazer as perguntas que pediu para eu esperar até o momento certo?
- Responda às minhas, primeiro. Como dormiu, filho?
- Bem, mestre, obrigado.
- Acordou alguma vez.
- Três, somente, para verificar ruídos.
- Que tipo?
- Não sei explicar. Acordei com a sensação de que os outros precisavam de algum auxílio e fui me certificar.
- Então vocês já está pronto para ter dúvidas e fazer suas perguntas. Comece.
Como
de hábito, o discípulo faz um gesto de reverência, se senta em posição
de lótus e começa a servir o chá com um pão rude, recheado de castanhas
que ele mesmo colheu e armazenou, durante o outono. Aliás, enquanto os
outros reclamavam das colheitas abaixo das expectativas, ele buscou
alimentos para o mosteiro em outras fontes, sem que seu mestre
precisasse instruir a respeito...
- Mestre, responda à minha ignorância, o motivo de você aceitar homens e mulheres em seu mosteiro.
- Eu não aceito.
O
discípulo, surpreso, faz um olhar muito engraçado, tirando alguns risos
daquele homem grisalho, mas não tão velho como as pessoas se
acostumaram a considerar um mestre, que ele mesmo não se considera. Em
todo caso, precisa ser chamado por algum nome, além do próprio de
nascença, que é muito comum, então aceita a alcunha, mas não admite que o
tomem por 'senhor', não se considera digno...
- Alguns monges só
aceitam homens, outros só mulheres. Algumas monjas só aceitam mulheres,
outras só homens. Nos quatro casos, ele agem de acordo com a sua
natureza, com seus motivos e seus objectivos.
- E quais os do mestre?Por que 'não aceita' homens nem mulheres?
-
Porque não aceito sexos aqui dentro, eu aceito pessoas. Minha natureza é
a de compartilhar meu aprendizado, na medida da capacidade de cada um
de vocês, sem olhar para o que é supérfulo, para que cresçam e se sintam plenos em seus próprios caminhos. Meu objectivo é fazer vocês escalarem a montanha eterna, me alcançarem e, com a ajuda da Fonte, que me ultrapassem.
- "Montanha eterna", mestre? Nunca nos falou dela?
-
Pois bem, agora te falo, é o caminho que vocês estão fazendo. Enquanto
as pessoas, apegadas aos seus orgulhos e suas vergonhas, raramente
conseguem se fixar além da base da montanha, quase sempre oscilando
entre ela e o vale, você está em uma altitude em que pode ver boa parte
da região.
- Eu não reclamo, mestre, porque abracei este caminho
de minha própria vontade, estava ciente dos fardos e da escassez de
repousos, de que fui alertado. Mas minha fraqueza ainda questiona o
motivo de ser tão íngreme, às vezes a ponto de ser quase vertical, com o
peso nos puxando para o vale.
- É justamente para isso, para que você despenque e se esborrache ao menor descuido.
Mais
uma cara cômica e mais uma gargalhada do homem, que sempre ensina aos
discípulos que ter bom humor é a única amenidade que podem ter, ao
aceitarem suas lições...
- Por que eu deveria me estatelar como uma fruta podre, mestre?
Mais uns risos e ele responde..
-
Não deve. O risco de cair é proposital. Com ele, você se mantém ocupado
demais para pensar na vida alheia. Você se concentra na única pessoa
que realmente merece sua raiva, seu desprezo e toda a sua ira.
Um breve olhar, dentro dos olhos, e ele percebe ser consigo...
- Compreendo, mestre. Minhas posições políticas me deixaram vulnerável, quando ainda perambulava pelo vale.
-
Não, filho. Suas posições políticas, ideológicas, enfim, qualquer
convicção é irrelevante, se você estiver no comando e não deixar que ela
tome suas rédeas. Você estava vulnerável porque tinha orgulho de ser o
que pensava que era, e vergonha de muitas pessoas não compartilharem de
seu orgulho. Lembra-se, quando você chorou como uma criança, ao ver seus
antigos inimigos em situação difícil?
- Foi minha responsabilidade, mestre. Eu ajudei a colocá-los naquela situação.
-
Não. Eles se colocaram naquela situação. Enquanto eles e seus antigos
amigos culpavam os estrangeiros de roubarem suas riquezas, empregando
suas forças no ataque à ameaça imaginária, seus recursos minguaram, eles
descuidaram de seu trabalho e da assistência ao próximo. Você chorou
porque eles não eram mais seus inimigos, eram tolos revoltados, que nem
por isso deixaram de ser seus irmãos no mundo. Foi a primeira lição que
você aprendeu, e aprendeu bem, escalou vários metros em um só dia.
- Então mostre, mestre, em parábola, como o orgulho e a vergonha impedem que as pessoas comecem a subir a montanha eterna?
-
Não impedem. Orgulho e vergonha são duas grandes pedras gêmeas, uma não
se afasta e não subsiste sem a outra. Como pedras, o lugar delas é no
vale. São pedras afiadas, mas brilham bonito e escondem bem o rosto de
quem as porta. Ferem, mas convém a quem as carrega.
- Às vezes precisamos usar pés e mãos para escalar esta montanha.
-
O que é quase impossível com duas pedras pesadas e ferinas ocupando
mãos e visão. São pedras feitas para se admirar, mas no lugar delas, às
vezes para se proteger à sua sombra quando a luz é muito forte. Não se
deve querê-las para si, elas têm utilidade limitada e restrita.
Alguns
minutos de silêncio permeiam o quarto, enquanto ouvem-se sons de
mantras em música pelo mosteiro. De tão ocupados, tão absorvidos em suas
funções, os iniciados raramente vêem suas diferenças. O trabalho
incessante, seja no que for, é uma regra de ouro do mosteiro, eles não
têm tempo para pensamentos frouxos...
- A serenidade do mosteiro, mestre...
- Sim?
- Não é do mosteiro. É nossa.
-
O que faz um lar, uma comunidade, uma nação, discípulo, não é o
território, não é seu hino, não são seus estandartes, muito menos o seu
rei. Tudo isso muda. Um terremoto abala a terra e ela desaparece sob
seus pés; a língua muda com o tempo, e as palavras do hino fazem cada
vez menos sentido; Os estandartes desbotam e rasgam com o uso, sem o
qual eles não se justificam, conquistadores chegam e os trocam pelos
seus. O que faz um lar, uma comunidade, uma nação, discípulo...
Deixa-o responder à própria dúvida...
-
São as pessoas que integram o lar, a comunidade, a nação. Sem elas,
nenhum deles existe. Eu não tenho vergonha de ter sido um tolo, teria se
ainda o fosse.
- Sem vergonha, não há orgulho.
O mestre observa seu discípulo, percebe que está consciente de sua respiração, de seu corpo, da posição de cada dedo, a ponto de saber onde está um pequeno pedaço de pão, que pega e mastiga com suavidade. Respirando com serenidade, deixando cair uma lágrima. O mestre sabe que é de alívio...
- Mestre, esclareça à minha ignorância, por que disse que é "quase impossível" subir a montanha sem usar as mãos?
- Você acaba de subir alguns metros sem usá-las. O seu coração está tão leve, que em vez de puxá-lo para baixo, o puxa para cima. É o coração, não a cabeça, a parte mais pesada de uma pessoa. A cabeça, como os milênios provaram, não nos serve para nada além de nos dar meios de como comer, ver e ouvir.
- Minhas mãos não podem ficar vazias mestre.
- Então as dê aos seus irmãos e ajude-os a subir.
- Como o mestre tem feito por mim?
- Como meu Mestre tem feito por mim.